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quinta-feira, 26 de maio de 2011

A tolerância em relação ao desvio

A tolerância é um valor avisado mesmo para aqueles que não comungam do relativismo cultural quase absoluto. Dadas as limitações humanas, as nossas certezas esfumam-se inesperadamente quando menos esperamos.

Mas há limites.

Trabalhei há muitos anos num hospital de província onde ocorriam sinais de tolerância interpares difíceis de aceitar. Estavam além dos limites.

Uma vez um médico senior, bastante conceituado, adoeceu com uma meningite viral. Foi transferido para um hospital central onde permaneceu semanas. Quando voltou estava diferente. Infelizmente para pior. Apesar de uma certa preservação da competência técnica, principalmente nos gestos de rotina, o Dr. tinha perdido alguma inibição. Provavelmente havia disfunção lobar frontal. Contudo, dado as características patriarcais do Dr., a sua vetusta idade e o inabitual excesso de tolerância dos portugueses em geral e dos médicos em particular, para com os colegas e amigos, multiplicavam-se os exemplos de atitudes inapropriadas. Tudo lhe era aceite com bonomia e quando a bonomia desapareceu tudo era aceite na mesma. Toda a gente dizia que "alguém" tinha de fazer alguma coisa e ninguém fazia nada.

Um dia o Dr. recebeu como chefe de equipa o serviço de urgência (o banco) e, para variar, o serviço estava sobrelotado. Doentes em macas por todo o lado, doentes em espera há horas, queixas e queixumes acumulados. O médico tratou logo de declarar a falta de liderança da equipa de urgência anterior que evidentemente não sabia orientar os doentes com eficácia. Para usar a gíria médica, era preciso alguém com capacidade para "limpar" o banco. O Dr. encontrou em si próprio capacidades para o fazer, enquanto zurzia os "médicos novos" com muita teoria mas sem pedalada prática.
Convocou o enfermeiro chefe e ordenou-lhe com o vozeirão: pergunta aí quem são os doentes da ADSE para eles levantarem a mão.
- Desculpe doutor? questionou o enfermeiro chefe.
- Manda aí os doentes das macas que forem da ADSE levantarem o braço, caraças!
- Mas isso pode-se ver nos processos, propôs o enfermeiro.
- Ai o gajo! disse o médico, e de seguida em voz tonitruante ordena bem claro: Quem for da ADSE ou da ADME ou dos SAMS levante o braço!!
Dois ou três doentes disseram presente.
- Quem for da Caixa levante o braço!!
Dez ou doze doentes acamados soergueram a mão.

OK, diz o Dr para o enfermeiro, vamos dar alta a todos os doentes que levantaram o braço. O enfermeiro ainda resistiu mas não havia volta a dar-lhe. O Chefe de Equipa de Medicina pegou nos processos e deu alta a todos os doentes que comprovadamente ouviam, percebiam português e se mantinham capazes de levantar um braço.

Pois bem foi só aí que o médico foi afastado de funções. Foi a gota. Mas que o copo era fundo isso era pois foram meses de disparate ao leme de um barco que merecia melhor.
Voltarei ao assunto da "tolerância" interpares mais tarde.

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