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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Política e o regresso da poliomielite a Angola

A poliomielite é uma doença causada por um vírus que tem o potencial para, numa minoria de doentes, provocar paralisias que ficam para toda a vida. Apesar de estar erradicada de Portugal todos conhecemos pessoas com alterações motoras sequelares à infecção na infância.

Esse aspecto devastador da deficiência de que ficam portadores as suas vítimas fez com a doença fosse vista como uma maldição ainda há escassas décadas. Para essa imagem tão mitológica como verdadeira da ameaça da polio sobre o Ocidente concorreu o facto de ter sido no século XX que surgiram as grandes epidemias de polio que varriam o mundo desenvolvido periodicamente de tantos em tantos anos. Num certo sentido foi a melhoria das condições básicas de saúde que transformaram uma doença endémica de baixa malignidade numa doença epidémica que deixava memória em centenas de milhar de vítimas.

Após um extraordinário esforço ao nível planetário a polio estava há pouco tempo à beira da extinção. Mantinha-se apenas na India, no Afeganistão, no Paquistão, no norte da Nigéria e pouco mais.

Em Outubro de 2003 forças políticas islâmicas lançaram a suspeita de que a vacina da polio fazia parte de uma conspiração ocidental para diminuir a população islâmica e estava contaminada com medicamentos para diminuir a fertilidade feminina e com o virus VIH / SIDA. Três estados do norte da Nigéria (Kano, virtualmente o último reduto de polio em África, Kaduna e Zamfara) suspenderam o programa de vacinação, no que foram seguidos por outros estados.

Em breve a estirpe selvagem de polio dessa região espalhava-se pelos estados vizinhos e por outros países africanos. Um dos países mais severamente atingidos foi Angola, país onde tem sido feito um importante esforço para retomar o controlo da situação mas ainda sem o sucesso necessário.

Por isso se recomenda que mesmo os adultos vacinados na infância contra a polio devem receber um reforço antes de viajarem para Angola.

A tolerância em relação ao desvio

A tolerância é um valor avisado mesmo para aqueles que não comungam do relativismo cultural quase absoluto. Dadas as limitações humanas, as nossas certezas esfumam-se inesperadamente quando menos esperamos.

Mas há limites.

Trabalhei há muitos anos num hospital de província onde ocorriam sinais de tolerância interpares difíceis de aceitar. Estavam além dos limites.

Uma vez um médico senior, bastante conceituado, adoeceu com uma meningite viral. Foi transferido para um hospital central onde permaneceu semanas. Quando voltou estava diferente. Infelizmente para pior. Apesar de uma certa preservação da competência técnica, principalmente nos gestos de rotina, o Dr. tinha perdido alguma inibição. Provavelmente havia disfunção lobar frontal. Contudo, dado as características patriarcais do Dr., a sua vetusta idade e o inabitual excesso de tolerância dos portugueses em geral e dos médicos em particular, para com os colegas e amigos, multiplicavam-se os exemplos de atitudes inapropriadas. Tudo lhe era aceite com bonomia e quando a bonomia desapareceu tudo era aceite na mesma. Toda a gente dizia que "alguém" tinha de fazer alguma coisa e ninguém fazia nada.

Um dia o Dr. recebeu como chefe de equipa o serviço de urgência (o banco) e, para variar, o serviço estava sobrelotado. Doentes em macas por todo o lado, doentes em espera há horas, queixas e queixumes acumulados. O médico tratou logo de declarar a falta de liderança da equipa de urgência anterior que evidentemente não sabia orientar os doentes com eficácia. Para usar a gíria médica, era preciso alguém com capacidade para "limpar" o banco. O Dr. encontrou em si próprio capacidades para o fazer, enquanto zurzia os "médicos novos" com muita teoria mas sem pedalada prática.
Convocou o enfermeiro chefe e ordenou-lhe com o vozeirão: pergunta aí quem são os doentes da ADSE para eles levantarem a mão.
- Desculpe doutor? questionou o enfermeiro chefe.
- Manda aí os doentes das macas que forem da ADSE levantarem o braço, caraças!
- Mas isso pode-se ver nos processos, propôs o enfermeiro.
- Ai o gajo! disse o médico, e de seguida em voz tonitruante ordena bem claro: Quem for da ADSE ou da ADME ou dos SAMS levante o braço!!
Dois ou três doentes disseram presente.
- Quem for da Caixa levante o braço!!
Dez ou doze doentes acamados soergueram a mão.

OK, diz o Dr para o enfermeiro, vamos dar alta a todos os doentes que levantaram o braço. O enfermeiro ainda resistiu mas não havia volta a dar-lhe. O Chefe de Equipa de Medicina pegou nos processos e deu alta a todos os doentes que comprovadamente ouviam, percebiam português e se mantinham capazes de levantar um braço.

Pois bem foi só aí que o médico foi afastado de funções. Foi a gota. Mas que o copo era fundo isso era pois foram meses de disparate ao leme de um barco que merecia melhor.
Voltarei ao assunto da "tolerância" interpares mais tarde.

Educação médica fora de fronteiras

A educação médica torna indispensável, principalmente ao nível da Medicina Hospitalar (julgo eu), a ida a congressos, simpósios, cursos e eventos semelhantes no estrangeiro. A dimensão e a complexidade da Medicina fazem com que seja impossível num país manter-se o estado da arte com acções de educação médica apenas dentro de fronteiras. A haver um país que conseguisse fazer isso - manter a sua Medicina a um nível elevado sem que os seus médicos saíssem rotineiramente do país - esse país seria um caso único. O candidato isolado a caso único seria actualmente os USA. A UE se olhada como um"país único" também poderia qualificar-se.

Isto só pode ser posto em causa por quem não saiba do que fala ou esteja mal intencionado.

A saída de médicos em número relevante para o estrangeiro, para manter o nível da Medicina Portuguesa no estado moderadamente evoluído que se observa hoje, é do interesse nacional. Como se compreenderá os custos envolvidos são de certa monta. Quem suporta estes custos é tradicionalmente a indústria farmacêutica pois, ao contrário do que acontece com as Universidades, não há financiamento institucional relevante para esse efeito.

A motivação da indústria farmacêutica na colaboração na formação médica é comercial. A indústria acha que vende mais fármacos se colaborar na formação médica. O custo dessa formação é incorporado no preço dos medicamentos e pago pelo estado e pelos doentes.

Acontece que mesmo com a enorme melhoria do controlo (controlo externo e auto-controlo) da indústria farmacêutica, continuam a existir muitos casos em que o que a indústria financia não é a formação médica mas sim o turismo. Como a motivação da indústria é comercial e a motivação de alguns médicos não é científica, este fenómeno persiste apesar de muito diminuído como quem está no terreno sabe. Diminuído pelo controlo e diminuído pela motivação médica que hoje é muito mais dirigida à formação genuína do que foi no passado.

Apesar do tema dos abusos ser importante não é ele que me interessa hoje. Abordei-o porque é incontornável quando se fala de financiamento por parte da indústria às actividades médicas.

Acontece que a diminuição da margem de comercialização dos fármacos, está a encolher de forma dramática as verbas de que a indústria dispõe para investir na formação médica. Quem irá substituir a indústria no financiamento da formação médica? Os hospitais - ou seja o orçamento de estado - é a única alternativa possível. É aliás assim que funciona a formação noutros países e desistir da formação seria um desastre nacional. Na minha opinião o financiamento directo por parte do estado é teoricamente melhor do que o financiamento por parte da indústria. Infelizmente é improvável que o estado português tenha a lucidez e as verbas necessárias à manutenção dessa actividade ao nível actual pelo que é indispensável que se procurem soluções imaginativas para fazer o mesmo com menos.



terça-feira, 24 de maio de 2011

Mistérios da audição e da loucura

Tive dois doentes já de alguma idade que sofriam de déficite de audição. Quando digo déficite de audição não me refiro a hipoacúsias ligeiras limitadas a certas fequências. Digo diminuição da audição no limiar da surdez.

Ambos usavam "aparelho" para poderem ouvir qualquer coisa e ambos só ouviam sons de intensidade elevada. Tinha-se de falar bem alto para ouvirem qualquer coisa.

Foram vistos em otorrino e o diagnóstico de otosclerose não deixou dúvidas aos colegas. Os doentes ficaram a saber que o ouvido interno sofria de "má circulação". Foram medicados com as coisas do costume com a eficácia do costume.

Anos depois ambos tiveram demências e, evoluídos nas demências, passaram a ouvir. Ouvir sem "aparelho" e em voz baixa.

Como se passa de otosclerose para audição normal?

Recentemente vi um jovem que entre outros problemas era incomodado por ouvir bem demais. Ouvia todos os pequenos sons que ocorriam próximo ou menos próximo. Os pais tinham de andar descalços em casa porque ele ouvia os passos e isso incomodava-o. Ouvia o clique dos botões dos electrodomésticos a grande distancia, o rodar das chaves nas portas a andares de distancia, o tilintar de talheres em divisões afastadas.

Por outros motivos, fiz com um colega psiquiatra uma conferência médica sobre este doente e tornou-se claro que o rapaz sofria duma psicose. O psiquiatra explicou-me que essa hiperaudição era vulgar nos psicóticos, tal como era vulgar uma acentuação marcada do olfato.

Discutindo os idosos tornou-se evidente que eles estavam na fase da demência em que há elementos psicóticos evidentes. Foi por isso que passaram a ouvir como jovens, antes do apagão definitivo das suas mentes.

Porquê? Que há no tratamento do sinal acústico nos psicóticos que "cura" a surdez?
Se se descobrir e se se descobrir como replicar esse fenómeno sem replicar a doença mental, resolveremos uma das disfunções que mais fazem sofrer os nossos seniors.


segunda-feira, 23 de maio de 2011

Placebo

Henry K Beecher popularizou o conceito anterior de "efeito placebo" num artigo com grande impacto, publicado em 1955.

A ideia de que um agente fisiologicamente neutro, possa modificar as queixas de um doente ou mesmo, o que é mais duvidoso, o curso fisiopatológico de uma doença, foi integrada em boa parte dos estudos de ciência clínica. Quando estes estudos envolvem fármacos, a comparação entre o efeito do medicamento verdadeiro e o efeito do placebo tem de ser demonstrada, para o ensaio ser considerado positivo. Ou seja, não basta que um medicamento melhore o doente para ser considerado eficaz. Tem de levar a melhoras mais expressivas que o agente neutro - o placebo.

Para que se aceite um medicamento é importante que, durante o estudo clínico, o placebo seja aparentemente igual ao medicamento em termos visuais, de paladar, etc, que o doente não saiba se está a tomar o placebo ou o medicamento e que o próprio médico desconheça esse facto. Nalguns estudos até os matemáticos que fazem a análise dos dados, não sabem que grupo de doentes tomou o medicamento e que grupo tomou o placebo.

Como se vê o argumento de que quando as pessoas tomam um determinado remédio melhoram, não é suficientemente forte para que os médicos aceitem esse tratamento como demonstrado.